Fred Coelho

Se a gente postasse menos, talvez compreendesse mais

Esse texto é dedicado a Carlos Vergara, o maior de todos que andam por aí.


I
Em um trabalho que já é mundialmente conhecido, Carlos Vergara fotografa, em pleno carnaval carioca de 1973, um homem negro que pintou em seu peito a palavra “Poder”. Essa imagem eterna sintetizou um tempo em que a comunicação política tinha poucos meios para circular além de sua força oral e de suportes tradicionais impressos. Tal força de uma simples palavra pintada em uma cena-valise como essa, faz com que, até hoje, a fotografia de Vergara permaneça como potência utópica de toda a luta antirracista que, cada vez mais, se efetiva dentre a juventude negra do país.

Mais de quarenta anos depois, Luiz D’Orey nos apresenta em “Eu não falei?” o avesso – ou a expansão infinita? – daquela imagem. Não há mais uma palavra ou enunciado que se estabeleça com tamanha presença e sintetize uma época. Os ditos e escritos do contemporâneo só produzem distopias, esvaziamentos radicais em velocidades desnorteadoras de nossos sentidos.


II
A história da arte, desde seus princípios orientais e ocidentais, instalou na brecha entre a poesia (isto é, a palavra) e a imagem, uma espécie de tensão produtiva em que a harmonia ou a hegemonia de uma sobre a outra foram pelejadas de muitas formas. Uma das mais conhecidas faces dessa tensão situa, grosso modo, a palavra no âmbito do tempo e a imagem no âmbito do espaço. Nessa definição mutante, há uma costura tênue cuja linha é a ideia de narrativa. Para muitos, a imagem precisa narrar o mundo. Dessa forma, a palavra sempre retorna como uma espécie de véu cobrindo as figuras e formas. Mesmo que Clemente Greenberg tenha declarado o fim da narrativa a partir do abstracionismo e do expressionismo abstrato norte-americano, ainda debatemos os temas ligados a esse par. Principalmente por sabermos que a palavra, enquanto forma gráfica, é uma imagem – e que uma parte importante da arte feita ao longo do século XX explorou esse campo até o limite.


III
Os trabalhos de Luiz, porém, vão além dessa tradição moderna. Ele atravessa, corta, cola, vaza, rasura, satura e sutura não mais a palavra, mas o discurso materializado em escrito. E não qualquer escrito. De forma atenta, ele ampliou os sentidos de leitura das redes sociais em um ano crítico para o mundo – a eleição de Donald Trump para a presidência norte-americana.  Mergulhou nas redes sociais como o Twitter e passou a compilar o noticiário viralizado dos trend topics, ou seja, as falas-escritas mais comentadas do momento.

Essa nova forma de escrita em rede, cuja força do discurso é idêntica a uma quimera, se desenrola em um aqui e agora mundializado e desloca a velha ideia de espaço e tempo. Tal deslocamento faz com que a narrativa do mundo seja uma espécie de fluxo instável de fatos, falas e formas. Atualmente, palavra e imagem já nascem contaminados por desdobramentos imediatos que as rasuram. São tempos em que ambas naufragam perante a banalização do falso. Vivemos a era da velocidade do código e da relatividade da crença.

Nesse mundo, o artista que deseja pintar a “lição das coisas” é atropelado por tal profusão difusa de sentidos. Nas redes, a cada tweet, a cada nova polêmica, o mundo sai do lugar. Se desde as experiências impressionistas e do advento da fotografia não é mais a pintura a garantir a imagem desse “real”, hoje ela não pode nem mesmo fixar uma impressão, um olhar singular, sem ser afogada pela produção incessante e voraz de códigos digitais. São tempos em que robôs disparam palavras em rede e dedos de silício produzem milhões de simulacros por minuto.


IV
Nesta exposição, a obra de Luiz apresenta uma maturidade rara dentre os artistas de sua geração. Ela captura uma ideia histórica – o jogo entre palavra e imagem – e abandona qualquer nostalgia de uma narrativa (seja como presença, seja como esvaziamento da mesma). Seu motor é uma pergunta impossível de responder: como capturar em imagem o atual fluxo contínuo de informações? Ao abordar o tema político de um momento de sua vida (Luiz reside parte de seu tempo em Nova Iorque), ele percebe que redes sociais e jornais produzem um conflito permanente e irresolúvel entre o que falado (a reportagem que compila o que já virou fato) e o dizendo (o fluxo incessante dessa escrita-em-gerúndio que são as redes sociais). Para efetivar essa ruptura discursiva, palavras são cortadas a laser, páginas de jornais são esburacadas com novas camadas de texto, criando duplas leituras com sobras de outras coisas ditas sobre o mesmo. Luiz sabe que hoje tudo é falso e tudo é dito com todas as letras.

Se a narrativa do mundo estraçalha a palavra, Luiz dá materialidade a isso fazendo dela uma espécie de estilete visual. Ele ativa nosso olhar já pixelizado em telas de diferentes escalas. Na nossa escalada ciborgue, vemos pixels como imagens, vemos imagens como sequências de micropontos binários, lemos textos produzidos por algoritmos. A palavra e a imagem, cada vez mais, se tornam vazias. E é justamente dessa vazies – inclusive da verdade do que é dito – que ele produziu matéria artística. Suas obras dão carne ao que não tem corpo. Não mais a palavra impressa dos livros, mas sim a fala digital transformada em letras confusas que seguem a manada dos assuntos mais comentados do dia.

Na série de telas “Cascade” encontramos o ponto alto disso. Ao dar volume ao fluxo de letras que formam as frases retiradas das redes e notícias, Luiz vai aos poucos aproximando o espaço entre as linhas. É nessa operação banal, e eis aí a inteligência do artista, que as palavras se adensam e começam a virar cor. O preto do tipo se transforma em grossas linhas cinzas até tornar-se uma massa compacta e escura. As tiras de cores fortes contrastam com essa massa e produzem um inusitado efeito visual. Luiz faz pintura do que é um amálgama de informações em entropia. E apesar de utilizar palavras e frases, produz uma imagem que nada diz. Nem tempo, nem espaço: Luiz pinta a velocidade de uma estática. O vídeo “Burburinho” demonstra em movimento o processo imagético e nos dá a senha para ajustar os olhos a mirar esse mundo em cascata.


V
Outro Luiz, o Melodia, cantava que “se a gente falasse menos, talvez compreendesse mais”. A exposição de Luiz D’Orey já se situa em um tempo que falar menos é uma utopia tão grande como o Poder pintado no peito de um homem negro em 1973. E se um dia o bardo afirmou que a vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, Luiz nos apresenta um tempo em que a história continua sendo contada por idiotas, porém cheia de escrita e fúria. O som? Tornou-se esse ruído de infinitas vozes, um murmúrio difuso, confuso, hiperbólico, histérico. Apure os ouvidos, se aproxime dessas telas, dessas esculturas, desses jornais e vídeos. Consegue escutar? Sabe o que elas murmuram? Pois é. Eu não falei?